domingo, 23 de março de 2014

O aborto na história da Igreja Católica

A rejeição ao aborto aparece em toda a história da Igreja, desde os documentos dos primeiros cristãos, como, por exemplo, a Didaqué[i], a qual explicitamente recomenda que “Não mate a criança no seio de sua mãe [o aborto], nem depois que ela tenha nascido [o infanticídio]” (n. 2, 2). A Didaqué foi escrita provavelmente no final da década de 90 d. C., logo, neste período, ainda haviam apóstolos vivos. Por exemplo, o apóstolo João só morre, em Éfeso, no ano 103 d. C. Esse fato demonstra como a rejeição ao aborto era presente na geração apostólica e nos primeiros cristãos. Já a Epistola de Barnabé[ii], outro documento cristão do final do século I,analogamente a Didaqué,recomenda: “Não farás morrer a criança no seio da mãe [o aborto], tampouco após o nascimento [o infanticídio]”. Assim como a Didaqué, a Epistola de Barnabé também foi publicada antes da morte do apóstolo João. Como se pode ver, desde a geração apostólica que os cristãos rejeitam o aborto.
 
Após a publicação da Didaché e da Epistola de Barnabé se dá uma linha continua de testemunhos inequívocos dos Padres da Igreja e dos escritores eclesiásticos, do Oriente e do Ocidente, sem nenhuma voz discordante. Tetuliano, Santo Agostinho e Cesário de Arles são os autores deste período que possuem mais intervenções em relação ao aborto. Apenas como exemplo cita-se a seguinte passagem de Santo Agostinho: “Às vezes, chega a tanto esta libidinosa crueldade, ou melhor, libido cruel, que empregam drogas esterilizantes, e, se estas resultam ineficazes, matam no seio materno o feto [o aborto] concebido e o jogam fora, preferindo que sua prole se desvaneça antes de ter vida, ou, se já vivia no útero, matá-la antes que nasça [o aborto]. Repito: se ambos são assim, não são conjugues, e se tiveram esta intenção desde o princípio, não celebraram o matrimônio, mas apenas pactuaram um concubinato”[iii].
 
Aqui cabe ressaltar a dúvida de Santo Agostinho e de outros teólogos – dentre eles Santo Tomás – sobre o início da vida. É verdade que pela tradução grega da Bíblia foi criada uma distinção entre feto formado e feto não formado (distinção derivada do pensamento grego e não existente no texto hebraico original de Êxoto 21, 22-23). Porém, ainda que estes teólogos – pelas poucas ferramentas científicas que possuíam – tivessem realmente tal dúvida, jamais defenderam que o aborto seria lícito. Pelo contrário, Santo Agostinho afirma que ainda que não estivessem formados (segundo a sua concepção) mereciam todo o respeito de uma vida humana por aquilo que chegariam a ser.
 
O Magistério da Igreja, ainda sem entrar nessa questão específica durante os primeiros séculos, sempre condena claramente o aborto. Nos primeiros séculos, pela evidência do crime cometido, não existem textos doutrinais do Magistério, porém existem penas concretas – sanções canônicas – que demonstram a gravidade do pecado. Os primeiros documentos em relação a isso são os Concílios de Elvira (no ano de 305 d. C.) e de Ancira (no ano de 314 d. C.). Este último excluía da comunhão, por toda a vida, à mulher que realizasse um aborto e estabelecia uma penitência de dez anos para que pudesse voltar à comunidade eclesial (ainda sem poder comungar). Essas penas eram locais e variavam de tempo de um país para outro – porém, de modo ininterrupto e universal, o aborto sempre foi colocado entre os pecados mais graves e, consequentemente, mais severamente punidos.
 
Ainda sobre a posição dos cristãos primitivos, em uma carta datada do ano de 374 d. C., tratando da disciplina eclesiástica a ser aplicada aos vários tipos de pecadores, São Basílio Magno, Bispo de Cesaréia, afirma que tanto a pessoa que fornece as drogas para fazer um aborto, quanto a mulher que as toma são culpadas de assassinato. A seguinte passagem, particularmente interessante, se refere aos primeiros: "Qualquer pessoa que propositadamente destrói um feto [realiza um aborto] incorre nas penas de assassinato. Nós não especulamos se o feto está formado ou não formado"[iv].
O cristianismo, desde as primeiras comunidades cristãs primitivas, buscou integrar em seu meio os diversos grupos excluídos da grande sociedade (mulheres, estrangeiros, deficientes físicos, etc). Isso fez que “por uma opção consciente nossa cultura reconhece como homem: doentes incuráveis, excepcionais, alienados, seres humanos acéfalos sem a mínima possibilidade de alcançar o nível da consciência, e, sobretudo, a vida ainda não nascida, mas concebida”[v]. É por causa disso que, do ponto de vista da doutrina e do Magistério da Igreja, pensar em um “direito ao aborto seria um contrassenso, uma aberração”[vi].
 
[i] DIDAQUÉ. Catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. São Paulo: Paulus, 1997.
[ii] EPISTOLA DE BARNABÉ. In: Veritais Splendor. Disponível em http://www.veritatis.com.br/patristica/obras/1405-epistola-de-barnabe.  Acessado em 10/11/2013.
[iii] SANTO AGOSTINHO. De nuptiis et concupiscentia. Livro 1, Capítulo 15.
[iv] BETTENCOURT, Dom Estevão. São Basílio (+379) e a Defesa da Vida. In: Pergunte e Responderemos, n. 346, março 1991.
[v] SNOEK, Jaime. Aspectos biológicos, éticos e jurídicos do aborto. In: Revista Eclesiástica Brasileira, v. 31, fasc. 124, dezembro, 1971, p. 887.
[vi] SNOEK, Jaime. Aspectos biológicos, éticos e jurídicos do aborto. op., cit, p. 888.

Sem comentários: