quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O mal que faz a discussão à frente dos filhos

Henrique Raposo
Expresso 4 de Dezembro de 2013

É uma cena que se repete vezes sem conta, no consultório, na rua, no café, no jardim: o pai a desautorizar a mãe que acabou de ralhar com o menino, a mãe a anular a ordem que o pai acabou de dar, pais a discutir a educação dos filhos à frente dos filhos, ou seja, os putos não recebem uma educação, assistem a um workshop. Há dias, no consultório pediátrico, um daqueles monstrengos que nunca ouviu um não parecia o Diabo da Tasmânia, limpava o chão com a roupa, tirava as folhas das plantas e, acima de tudo, estava naquela fase do pré-bullying no contacto com as outras crianças. Um amor. Às tantas, virou a atenção para um fio da mãe, transformando-o num ioiô. A mãe reagiu, colocou-o de castigo. Numa resposta pensada ao milímetro, o miúdo irrompeu num pranto que se ouvia no Marquês. Com a previsibilidade de uma cadelinha de Pavlov e fazendo exactamente aquilo que o garoto queria, o paizinho entrou em cena, retirou o fio das mãos da mulher e disse: "pronto, ninguém fica com o fio". Um verdadeiro Salomão.
Aquele pai não percebeu que tinha acabado de transformar a mãe numa espécie de irmã do seu filho, não percebe que o pai não desautoriza a mãe à frente do filho, e vice-versa. Sem o entrosamento entre Comandante e Imediato, o navio entra num motim. Vem nos livros, ou melhor, vem nos filmes. Esta malta nunca viu o "Caça ao Outubro Vermelho", esse prodígio da pedagogia? O Imediato repete sempre a ordem do Comandante e, quando discorda, chama o Comandante à parte para uma conversa longe dos ouvidos da canalha. Não, não estou a dizer que o pai é a voz de comando único. Sosseguem o facho progressista. O pai deve secundar as ordens da mãe, mesmo quando não concorda com elas, porque o importante é não desautorizar a mãe à frente do filho. Até pode achar que uma ida ao parque não faz mal, mas, se a mãe já disse que não, o pai tem de manter esse não. Sem esta renúncia, sem esta humildade, não há educação que resista e a vida em família transforma-se num inferno. 
Sem esta unidade entre pai e mãe, os garotos crescem sem educação, pior, aprendem logo a aproveitar as falhas na muralha paternal, tornam-se mestres na arte de atirar pai contra mãe e mãe contra pai, avó contra pai, sogra contra genro, nora contra sogro, periquito contra sogra, sogra contra hamster, um forrobodó de rancor provocado pela esperteza egoísta do petiz, uma esperteza alimentada pelo egoísmo do pai ou da mãe, que são incapazes de enfiar a viola no saco, de contar uma opinião divergente, de demonstrar um pedacinho de humildade. É por estas e por outras que educar crianças é a negação perfeita do nosso egoísmo pós-moderninho, da nossa obsessão com o eu, eu isto, eu aquilo, eu penso isto, eu gosto daquilo . Ter um filho é a némesis deste eu, porque exige a presença do nós, o casal. E, como não está para aturar esse nós, muita gente fica-se só pelo primeiro filho. 
Eu sei que muitos casais não têm mais filhos por causa da crise, mas a grande causa da crise demográfica não é económica, é de outra espécie. Por que razão já tínhamos poucos filhos antes da crise? 

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