domingo, 24 de junho de 2012

A importância da ética

A ética da primeira pessoa (a auto-exigência) deveria ser sempre a primeira condição para a ética da terceira pessoa (ser-se exigente com os outros). Infelizmente todos os dias se observam distorções deste contrato moral. E parece cada vez menos considerado o imperativo kantiano: Age unicamente segundo a máxima que te leve a querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei de tal modo que, se os papéis fossem invertidos, as partes em questão estariam sempre de acordo. As pessoas simples não entendem e indignam-se legitimamente. As elites exemplares escasseiam, a procura do bem comum dilui-se, ao mesmo tempo que brotam como cogumelos as falsas elites feitas de arrivismo e calculismo. O respeito pelas regras legais ou comportamentais tem sido menosprezado por certos grupos e grupúsculos de interesses partidarizados, particularistas ou secretistas que, não raro, ousam capturar o interesse público. Permita-se-me a imagem caricatural: parar no semáforo vermelho é quase um sinal de inadaptação social nos tempos que correm. De há muito, assiste-se a formas iníquas de promiscuidade e de disfarce de interesses privados e públicos, ao sôfrego domínio de certas instituições fundamentais por pessoas impreparadas, sem currículo e que as usam despudoradamente em benefício próprio. Já lá vai o tempo em que para se ocupar um lugar de alta responsabilidade política, institucional ou empresarial eram sempre necessárias provas de vida, de experiência e de responsabilidade efectiva. A exigência que Roland Barthes exprimiu dizendo que “um responsável nota dez: dois pontos de esforço, três pontos de talento e cinco pontos de carácter” já não é o critério essencial. Órgãos decisivos como o Tribunal Constitucional ou a Provedoria de Justiça têm vindo a ser sujeitos à mais descarada descaracterização pela via afuniladamente partidária. A indigência moral alimenta-se da falta de memória corroída pela primazia do presentismo, da impunidade de que, no fim, nada acontece, do escrutínio para “inglês ver” onde os sem-poder são penalizados e se desculpa quem viola as mais elementares regras éticas. Uma pequena irregularidade pode ser fatal, uma grande fraude perde-se na neblina processual. Os indefesos, os últimos, os sem voz são vistos crescentemente como uma quantidade, ao mesmo tempo que há todo o tipo de salamaleques e toda a panóplia de consideração hipócrita para pessoas ou entidades não recomendáveis. A aliança entre o fardo da burocracia e a exaltação da tecnocracia desumaniza as instituições, coisifica as pessoas e gera tentações corruptivas. Em muitas instâncias de diferentes naturezas, reforça-se o primado dos objectivos monetarizados, mas esfumam-se as referências, os princípios e os ideais. Mais do que nunca, parece valer-se não pelo que se é, mas pelo que se tem ou se insinua ter. A verdadeira liderança vem do exemplo, não do poder formal e efémero. Há na governação, nas instituições, nas empresas, na sociedade, notáveis exemplos de rectidão, serviço público e hombridade. No entanto, a perspectiva axiológica do uso do poder como poder-dever é cada vez mais a excepção. No frenesim de micro, pequenas e médias éticas, a sociedade vem-se tornando mais amnésica e dilui-se a fronteira entre o útil, o inútil e o fútil. O direito ao erro e a pedagogia da persistência perante a dificuldade são, muitas vezes, substituídos pela ilusão do facilitismo, da permissividade e da “troca” em circuito-fechado. Não devemos confundir o erro, inerente à nossa condição humana, com a irresponsabilidade, a ganância, a cupidez. Erro não implica culpa, mas culpa tenta justificar-se pela (falsa) inocência de um erro inventado. (...) O incentivo ao mérito e a ética da sabedoria integral e do esforço honesto são, não raro, abafados pela defesa da mediocridade e de igualitarismos bacocos que afastam os melhores, mas são esplendorosamente retributivos para toda a espécie de “boyismos”. (...) Recente estudo europeu sobre práticas corruptivas refere que “ a corrupção se materializa, por vezes, em práticas legais mas anti-éticas que resultam de regras de lóbi opacas, tráfico de influências e portas giratórias entre o sector público e privado”. (...) Também a linguagem tem sido sujeita a uma anestesia ou mudez moral que favorece o relativismo ético. Hoje o mentiroso não mente. Diz inverdades. Certas fraudes já não o são. Foram promovidas tecnocraticamente a imparidades. Um conflito de interesses até pode não o ser. Diz-se, então, que cria sinergias. A batota depende do batoteiro. A ética do esforço conta menos. Vale mais a esperteza arrivista. O valor da exactidão esvazia-se. O que conta é o calculismo da inexactidão. A flexibilidade é palavra de ordem para tudo, até mesmo para o carácter e conduta moral. A iconografia do sucesso, mesmo que aparente substitui a iconografia dos valores, mesmo que imprescindíveis. (...) Em suma, não há remédios técnicos para males éticos. Esta é a mais séria e profunda reforma estrutural e geracional que urge concretizar na sociedade portuguesa. Sem ela, não há troika que nos valha… Bagão Félix in Público

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