terça-feira, 4 de setembro de 2007

Objecção de consciência no quadro da actual legislação sobre o aborto

Objecção de consciência no quadro da actual legislação sobre o aborto

Princípios e quadro legal

1. A objecção de consciência é assunto de grande importância numa sociedade democrática. Na verdade, é próprio de um Estado democrático não impor uma adesão incondicional às regras fixadas pela autoridade, mas antes deixar ao cidadão a possibilidade de reflectir e de exprimir livremente as próprias objecções sobre a realidade legislativa de cada momento histórico, contribuindo desse modo para uma eventual modificação da mentalidade comum e da própria legislação. A objecção de consciência assenta, pois, numa ideia de primado da pessoa, de recusa de qualquer concepção totalitária do Estado.

Não está enraizada numa pretensa autonomia absoluta do sujeito em relação à norma e muito menos no desrespeito ou no desprezo da lei do Estado. Mas é garantia pessoal para os casos em que certo dever de actuar entra em conflito irremediável com a própria consciência.

2. A objecção de consciência é um direito fundamental, previsto no art. 41º, nº 6 da Constituição da República Portuguesa: «É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei».

3. A actual Lei nº 16/2007, de 17 de Abril — Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez —, no seu art. 6º, «assegura aos médicos e demais profissionais de saúde a objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez», fixando as respectivas condições. A Portaria nº 741-A/2007, de 21 de Junho (do Ministério da Saúde) procede à regulamentação técnica desse direito. As leis anteriores em matéria de aborto foram revogadas.

4. No plano da valoração ética, não há fundamento para discriminar os objectores quer na consulta prévia, quer no acompanhamento da grávida durante o previsto período de reflexão, com isso interferindo indevidamente na relação interpessoal que subjaz aos actos médicos. O fundamento da consulta e do período de reflexão mencionados não é o de promover a interrupção da gravidez, pelo que todos os profissionais, independentemente das suas convicções pessoais, estão igualmente habilitados a participar no processo, salvo, naturalmente, no caso dos objectores, na execução do acto de abortamento. Do mesmo modo, os médicos que no seu íntimo são favoráveis à interrupção da gravidez em todos os casos previstos na lei, também não são por isso impossibilitados de seguir as grávidas que, encontrando-se nessas situações, são contrárias à referida interrupção.

Trata-se, também, de considerar que cada grávida é um caso específico, pelo que só com a avaliação completa das circunstâncias pode o médico manifestar eventualmente a sua objecção a interromper aquela gravidez concreta.

A criação de um estatuto de objector de consciência (em vez da manifestação dessa objecção acto a acto) e o afastamento do objector de consciência da possibilidade de tomar parte na consulta prévia ao aborto livre e de acompanhar a grávida no período de reflexão que se lhe segue são alguns dos pontos da nova lei que podem ser contrários à Constituição, tendo sido enviado ao Tribunal Constitucional, por um grupo de deputados, o pedido de fiscalização sucessiva abstracta da lei que pode culminar numa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Por outras palavras: o Tribunal Constitucional vai deliberar sobre a eventual contrariedade à Constituição desse artigo da lei.

Procedimento prático

5. Ainda que não consagre a declaração de objecção de consciência caso a caso, a lei consagra a possibilidade de se ser objector apenas para determinados tipos de aborto. O médico deve pois manifestar, em documento assinado (de que a Portaria fornece, em Anexo, um modelo meramente indicativo), se é objector de consciência em todos os casos que o Código Penal prevê como interrupção voluntária da gravidez não punível ou apenas em algum ou alguns deles.

Para esse efeito, deve recorrer às alíneas do art. 142º do Código Penal, que se transcrevem a seguir:

Artigo 142º

Interrupção da gravidez não punível

1. Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:

a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;

d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas;

e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

2. […]

Por exemplo: o médico que for objector de consciência relativamente ao aborto livre, mas já o não for nos restantes casos, deve declarar: Sou objector de consciência nos casos da alínea e) do n.º 1 do art. 142º do Código Penal.

Dada a dificuldade em distinguir, na prática, o que é, por um lado, tratar a mulher grávida, ainda que como consequência indirecta não pretendida venha a ocorrer a morte do feto, e o que é, por outro lado, praticar um aborto sem que tal seja exigido pela análise clínica da situação, aconselha-se o médico a não declarar que é objector de consciência nos casos das alíneas a) e b) acima descritas.

6. Como ideia forte, parece conveniente tudo fazer para que os médicos objectores de consciência não fiquem fora do «sistema abortivo», no sentido de serem postos à margem e impossibilitados de intervir com o seu conselho em todos os casos que possam conduzir (ou não) à prática de um aborto.

Nessa ordem de ideias, pode pensar-se que é preferível que os médicos objectores não desobedeçam à lei, recusando-se a encaminhar as grávidas para uma porta de acesso à prática, por outro médico, do acto abortivo. Com efeito, isso não significa uma adesão a um acto que a sua consciência condena, antes a manutenção da possibilidade de contribuir, com o seu conselho, para que muitas mulheres, livre e esclarecidamente, desistam de interromper a gravidez.

Nota: Isto é diferente da consulta prévia a que a lei obriga antes de cada aborto livre — e da qual, por imposição legal, os objectores estão excluídos. Aliás, dessa consulta prévia deve sair um documento, assinado pelo médico que nela toma parte, que dá acesso ao acto de abortar.

Obviamente, também é válida – ainda que contrária à forma actual da lei – a recusa ao encaminhamento, na medida em que a consciência pode igualmente levantar-lhe objecções.

Repete-se: o que se diz em texto representa apenas uma tentativa de conciliar uma má lei da objecção de consciência ao aborto – que a todo o momento pode ser declarada inconstitucional – com o fim último de qualquer médico objector neste momento histórico: o de conseguir, dentro do sistema legal que temos, reduzir ao mínimo o número de vidas que se eliminam ainda dentro do útero materno.

Inexistência de prejuízo para os objectores de consciência

7. A declaração de objecção de consciência deve ser entregue ao director clínico do(s) estabelecimento(s) ou serviço(s) (autorizados a praticar «interrupções voluntárias da gravidez») onde o médico objector trabalha. O director possui assim um registo dos médicos objectores do seu serviço, destinado em exclusivo a permitir-lhe cumprir a lei, que o obriga a organizar o serviço «de modo a garantir a possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos legalmente previstos» (art. 3º da Lei nº 16/2007).

Deve recordar-se que um registo é sempre uma restrição da liberdade geral de actuação (art. 26º da Constituição), pelo que deve ter apenas o âmbito estritamente necessário para cumprir a finalidade para que foi criado. Logo: deve assegurar-se o controlo sobre o cumprimento escrupuloso deste princípio. O registo, os dados dele constantes, não pode ser usado ou invocado para mais nada, a não ser a organização do serviço no que diz respeito à salvaguarda da possibilidade de abortar dentro dos prazos previstos na lei. O acesso a esse registo deve estar vedado a todos aqueles que não sejam os responsáveis por essa tarefa, garantindo-se assim o seu carácter estritamente sigiloso. E será evidentemente um registo de cada serviço e não uma base de dados nacional.

8. Como fica dito, o estatuto de médico objector de consciência corresponde a um direito fundamental e ninguém pode ser discriminado ou prejudicado no seu trabalho, na sua carreira profissional, etc., por causa dele.

Se porventura se dessem decisões administrativas — aberturas de concursos públicos, exames de titulação para especialista, contratações, despedimentos, progressão na carreira, etc. — em que alguém fosse preterido ou prejudicado por ser objector de consciência, esses actos seriam ilegais por inconstitucionalidade e o prejudicado deveria impugnar o concurso ou, em qualquer caso, recorrer da decisão para os tribunais administrativos. Estaria em causa um grave desrespeito pelos direitos fundamentais à objecção de consciência e à liberdade de exercício de profissão (art. 41º, nº 6 e 47º da Constituição), além de uma violação do dever de imparcialidade da Administração Pública, também constitucionalmente consagrado (art. 266º, nº 2).

Em suma: aquilo que corresponde ao exercício de um direito fundamental — e a objecção de consciência é-o — não pode ser motivo de desclassificação na Administração Pública nem em qualquer outro sector da vida em sociedade.

Centro de Estudos de Bioética (Coimbra)
Texto daqui.

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